sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Em democracia nada se cria, tudo se copia

Abaixo encontra-se uma transcrição integral do artigo do jornalista Fernão Lara Mesquita, publicado em 19 de novembro de 2021, disponível em https://vespeiro.com/2021/11/19/em-democracia-nada-se-cria-tudo-se-copia/  em que fala a respeito da democracia na Suiça e nos Estados Unidos da América.

Para quem não sabe quem é Fernão Lara Mesquita sugiro que acessem https://telecom-brasil.blogspot.com/2019/09/aprendendo-o-que-e-democracia-com.html

Quando a Constituição dos Estados Unidos foi ratificada, em 1788, a Confederação Suíça, estabelecida pelo Bundesbrief, o documento assinado pelos três primeiros cantões a se unirem para formar a primeira nação européia (e a única que jamais teve um rei) em 1º de agosto de 1291, já existia havia quase meio milênio.

O “Pacto do Mayflower” é o exemplo mais conhecido. E as Câmaras Municipais das vilas autárquicas perdidas nas “Índias” e no Brasil do antigo Império Português tiveram traços dessa característica. Mas o da Confederação Suíça é o primeiro modelo acabado da “democracia espontânea”, esse modo de grupos humanos isolados se organizarem consensualmente “entre iguais” para um objetivo comum.

Quando a Biblioteca do Congresso incorporou a biblioteca particular de Thomas Jefferson, os primeiros pesquisadores já registraram a presença com destaque de dois autores suíços – Emerich de Vattel e Jean-Jacques Burlamaqui (1694-1748, membro do Conselho de Estado de Genebra e professor de ética e natural law) – entre os volumes mais manuseados pelo autor da Declaração de Independência americana. Foi ela que, pela primeira vez, afirmou como “verdades auto-evidentes” que “todos os homens foram criados iguais” e estabeleceu como “inalienáveis os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade” não segundo esta ou aquela fórmula estabelecida como “santificada” ou “correta” por terceiros, mas como cada um preferisse faze-lo. 

Naqueles volumes grifados e anotados à margem, estavam até frases inteiras reproduzidas na Declaração que iniciou a terceira jornada da democracia na Terra ao afirmar, na cara de um mundo de monarcas absolutistas hereditários detentores de poderes “atribuídos diretamente por deus” que, tudo mentira, “todo governo deriva os seus poderes do consentimento dos governados” e que “é direito e até dever desses governados corrigir ou abolir qualquer governo que se volte contra esses direitos inalienáveis”.

Com origem nos exilados das cidades-estado que viriam a constituir os reinos da Alemanha, da França, da Áustria e da Itália para a “Sibéria” mais próxima – aquelas montanhas inóspitas nas suas fronteiras comuns – a democracia suíça passara meio milênio como a única experiência divergente a sobreviver à margem do poder dos papas primeiro, dos reizinhos municipais depois, e dos monarcas absolutistas da Europa finalmente, graças à sua localização hiper-estratégica para o comércio europeu e às condições imbatíveis de defesa daquelas gargantas e “passos” nas montanhas que só eles conheciam e dominavam. 

Desde o primeiro minuto, portanto, os suíços viram na experiência americana o parentesco com a sua própria e entenderam a importância do sucesso dela para a vitória da democracia sobre a opressão reinante.

Havia batalhões suíços na Guerra da Independência e o “Kentuky-rifle”, arma decisiva dos colonos, evoluiu do Swiss-Jaeger. Henry Miller (Johan Heinrich Möller), estabelecido na Filadelfia em 1762 onde editava um jornal que fazia campanha pela entrada dos “alemães” americanos na guerra contra a Inglaterra era suíço. Seu jornal foi o primeiro a anunciar a Declaração da Independência.

Depois da vitoria, John Witherspoon, representando New Jersey na Convenção da Filadélfia, propôs formalmente a Suíça como modelo de confederação. Madison escreveu que as maiores influências na constituição americana foram Vattel, Burlamaqui, Montesquieu e Locke, embora tanto ele quanto Hamilton, cada um por seu viés, criticassem o sistema suíço pela ausência de um poder central mais forte que consideravam essencial à sobrevivência da democracia americana num mundo ainda totalmente adverso.

Os suíços, por sua imprensa e sua academia, também sempre acompanharam com o máximo interesse a revolução americana. Invadida por tropas francesas em 1798, a Suíça viu abolida a independência dos cantões. Restituída a independência passou os 40 anos seguintes debatendo o modelo americano. Em 1815 a soberania dos cantões estava restabelecida mas eles eram controlados por oligarquias. Em 1830 a revolução em Paris favoreceu a queda dessas oligarquias. Abriu-se então o debate da mudança do sistema de governo.

Paul Vital Troxler, líder dos “americanistas”, dizia que “a constituição dos EUA é uma obra de arte que a inteligência humana criou baseando-se nas leis eternas da divina natureza” e “um modelo para a Suíça e todas as outras repúblicas”. Os tradicionalistas, igreja católica à frente, resistiam. Os cantões dividiram-se num movimento secessionista que tinha paralelo com o que se insinuava nos Estados Unidos. Em 1847 um movimento militar deteve o conflito iminente e convocou uma constituinte. Em 1848 ratificaram uma constituição que embora volumosa comparada à original – tinha 147 artigos e 7 disposições transitórias – baseava-se na americana e estabelecia um federalismo de dupla soberania com um sistema bicameral como o deles: um Conselho de Estados como Senado, com dois votos por estado, e o Conselho Nacional, comparável à Câmara, eleito pelo povo. Em vez de um executivo único instituiram um conselho de 7 membros e uma suprema corte sem poderes de rever as leis passadas no Legislativo.

A diferença, segundo um autor, “é de DNA”: nos Estados Unidos uma aristocracia, movida pelas circunstâncias, criou uma constituição para atalhar os poderes dos estados independentes; na Suíça ocorreu o exato contrário; forças democráticas forçaram a criação de um governo central forte para se impor às aristocracias que tinham passado a mandar nos cantões.

A Suíça acompanhou a Guerra de Secessão americana consciente de que o seu resultado seria decisivo para ela própria. Em 1863, quando pareceu que o Sul estava ganhando, publicou-se por lá o “Manifesto de Berna”:

Do vosso lado do oceano agora levanta-se renascida uma grande e poderosa republica, superior a todos os seus inimigos. Com suas próprias forças os americanos venceram a doença que arruinou as esplêndidas republicas da antiguidade. Rejuvenescida, a republica americana instala-se para a eternidade, como o modelo e o escudo da liberdade. Ela será livre no futuro e para toda a História. Ninguém mais pode negar que as republicas podem existir em países de muita extensão. Essa vitória é um marco para a humanidade”.

Quando a “disrrupção” provocada pela “ferroviarização” do continente americano e a explosão da corrupção pela associação entre os robber barons dos albores da revolução industrial e seus monopólios e os políticos corruptos num país institucionalmente despreparado para enfrentá-los corroeu todo o apoio popular à democracia, foi a vez dos americanos voltarem-se para a Suíça para reconstrui-la. 

As ferramentas do recall e da iniciativa e referendo de leis eram desconhecidas do grande publico nos Estados Unidos até 1888 mas usadas na Suíça desde 1847. A partir de então surgem os primeiros trabalhos semi-acadêmicos sobre o sistema suíço. Seja qual tenha sido a faísca que iniciou o incêndio, o interesse pela Suíça começou a correr como fogo na macega na década dos 1890s. Entre 1891 e 1898 houve mais de 70 publicações sobre o assunto. Mas foi a imprensa que fez a revolução. O sistema suíço passou a ser o tópico jornalístico mais quente da década. Nenhum editor podia ignorá-lo e vários jornais e revistas mandaram equipes à Suíça para a execução de reportagens e estudos extensos.

A Suíça virou a meca de todos os reformadores e cientistas políticos e literalmente todos os americanos alfabetizados foram expostos ao tema que, finalmente, Theodore Roosevelt e o Partido Progressista encamparam. Isso os ensinou que antes do início da introdução desses instrumentos, nos 1830s, a Suíça estava dividida entre senhores e servos, plutocratas despóticos e políticos corruptos que exploravam o país servindo-se do sistema representativo, e que com sua adoção “o parasitismo político simplesmente desapareceu, as máquinas políticas ficaram sem uso, as leis foram re-escritas em linguagem que qualquer leigo podia entender, os impostos foram reduzidos e os privilégios dos monopolistas vieram ao chão”.

Em 1898 South Dakota foi o primeiro estado a adotar iniciativa e referendo. Utah foi o segundo em 1900 e Oregon o terceiro em 1902. Em 1912 ja eram 18. Entre 1913 e 1918 mais 5 estados aderiram. 

As duas guerras mundiais sufocaram o espírito reformista. Mas ele viria a reviver com a Proposition 13 da California em 1978 que iniciou uma rebelião nacional contra impostos abusivos. Hoje da esfera estadual para baixo nos Estados Unidos, e em todas as esferas, inclusive a constitucional, na Suíça, tudo e cada vez mais é decidido diretamente pelos eleitores que, não por outra razão, tornaram-se os mais bem educados e ricos do mundo.

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§ 16 Respostas para Em democracia nada se cria, tudo se copia

  • É totalmente definidor o conceito de “entre iguais” que se organizam consensualmente para governarem-se. Definitivamente não foi o caso da formação de nossa sociedade e que faz toda a diferença, explicando assim a dificuldade de exercermos cidadania. Falta-nos a educação e prática da vida cidadã.

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    • Embora induzidas de cima as Câmaras Municipais portuguesas viveram, sim, em boa medida, essa democracia expontânea dos povos isolados. No Brasil, durante mais de 300 anos ininterruptos, esses governos municipais eleitos, sem nenhuma quebra na regularidade das eleições, prouveram tudo aos seus governados: segurança, defesa, abastecimento, comércio, etc.

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      • Obrigado por responder.
        Infelizmente é um período que perdeu-se com o tempo. Em complemento posso dizer que, vivendo há muitos anos em Portugal, atualmente a prática da cidadania nas autarquias municipais é praticamente nula.

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      • Certo também…

        A democracia requer trato permanente e pode perder-se na virada de uma ou duas gerações se não for cultivada como Ronald Reagan nunca se cansava de lembrar.

        Mesmo cuidando bem do culto à História é muito fácil isso acontecer numa geração cevada na facilidade, conforme demonstra o que se passou entre as que viveram as guerras mundiais e as que vieram depois na Europa e nos EUA…

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  • rubirodrigues

    Grande artigo. Observe-se que embora os elementos, povo e cultura, confiram matizes próprias ao processo, mantido o sentido natural das coisas – leis da natureza – as coisas se encaminham no sentido certo. Estou convencido que a receita certa está indicada na natureza e o fato inquestionável de ela ter gerado consciência, deveria convencer-nos da eficácia dessas leis e da necessidade de entendê-las corretamente para navegar tranquilamente e sem susto pelo universo.

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  • Essa história é inspiradora, mas nossas lideranças demonstram resistências para avançarmos em questões muito mais comezinhas, além do que, não vejo nenhum movimento prático nesse sentido além deste seu valioso blog.

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  • Alexandre

    A Declaração da Independência dos Estados Unidos é realmente uma obra-prima, e o trecho destacado pelo Fernão é sua parte mais sublime. (E pensar que agora também querem “cancelar” a estátua do Jefferson…)

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  • Sim. O inimigo nao titubeia e mira precisamente os seus alvos…

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  • FRANCISCO G NOBREGA

    Maravilhosa aula de história da democracia. Obrigado!

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  • FERAX MANUTENÇÃO E MONTAGENS INDUSTRIAIS LTDA.

    Parabéns pelo instrutivo e brilhante artigo. A épica história dos “Founding Fathers” é inspiradora e invejável. São a base da grandeza americana. Oxalá Moro consiga catalizar nossa nação para caminharmos rumo à decência, educação, progresso, honestidade e justiça, sem privilégios, sem parasitas e respeitando todos os seres vivos que habitam nossa pátria.

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  • Jackson

    Grande texto Fernão. Elucidativo, histórico e de nos encher de inveja de vivermos num “semi-presidencialismo” tupiniquim.
    O Brasil não é para amadores e essa frase nunca esteve tão atual, foi uma quinzena de barbaridades dos “11 homens e um destino”, rasgaram o texto constitucional (ruim mas é o que temos) com a instituição do poder moderador para servir aos amigos que perderam no voto, pensar que o contribuinte pagou a semana em Lisboa pra turminha.
    Teve Moro lendo o discurso do FHC e a Dona do Banco Itaú falando que Lula é o cara (viu Obama o que vc fez).
    Acho que tudo isso é culpa do Cabral, devia ter tocado direto pras Índias. Ainda veremos mais capítulos dessa loucura institucional até 2022.

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  • Selma Santa Cruz

    Excelente reflexão, a partir de fatos e contextos históricos. Justamente o que mais falta hoje no nosso medíocre debate político. Há um trabalho hercúleo de educação a ser feito nessa área se se quiser tentar de fato destravar o país, não?

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  • rubirodrigues

    Há um trabalho hercúleo de conquista da razão e de uma racionalidade aderente à natureza que preside o desenrolar das coisas neste universo. A historiografia distingue Período Imperial, Idade Média, Modernidade e Pós-Modernidade ou era contemporânea, configurando um processo civilizatório evolutivo com modos de ser e de pensar crescentemente complexos. A superação de cada fase deu-se “naturalmente” sem perguntar aos homens – antigos detentores de poder -, se estavam ou não de acordo. O gatilho do próximo período já foi acionado pelo advento das redes sociais e o artigo do Fernão destaca valores dos quais a população não vai mais abrir mão. Pistas? As matemáticas de Pitágoras e de Platão. Talvez a Academia Platônica de Brasília a ser lançada em 2022 indique caminho mais amigável. Estamos em pleno renscimento.

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  • Marcos Andrade Moraes

    Muito bom, replicando. Ficaram duas dúvidas. A Suíça copiou de quem? Prouver?

    MAM

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  • Iza

    Obrigada, Fernao. Aprendendo sempre com vc.

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